terça-feira, 1 de julho de 2008

CARTA DE UMA ALMA ERRANTE

Limbo, 02 de novembro de 1808.


Caro amigo,

Confesso-lhe o imenso incômodo que me tortura em estar lhe escrevendo esta epístola. Gostaria de lhe transmitir todas as minhas impressões, as quais, garanto-lhe, são por demais exóticas e dignas de observação e estudo.

No momento em que recobrei minha consciência, senti uma imensa dor de cabeça, procurei localizar-me e saber o que tinha me acontecido. O amigo não pode imaginar o impactante susto que tomei ao ver-me em um imenso cemitério; senti-me mergulhado em um gigantesco oceano de cruzes e tumbas, como se eu fosse uma ilhota cercada por esse oceano. Susto maior foi perceber, ao olhar-me, que estava completamente despido.

Não poderia ficar ali parado, então me pus a caminhar, quem sabe encontraria alguém que pudesse explicar o que me acontecera ou mesmo onde foram parar minhas vestes, visto que sempre gostei de vestir-me rica e elegantemente. Um homem em pleno século XIX não poderia estar andando sem roupas por aí. Andei por dezenas de metros e só o que via eram tumbas e tumbas, nem mesmo a muralha que delimita tão mórbido cenário não me era visível. Meu Deus, o que me aconteceu?

A cada passo que eu dava, sentia aquela terra escura e fofa a tragar meus pés. Aquele cenário de história de terror já estava me fazendo enlouquecer. Quão feliz me senti, meu amigo, ao avistar de longe uma figura humana, a qual eu não conseguia distinguir pela escuridão e distância. “Será o coveiro deste cemitério?”, perguntava-me enquanto caminhava confuso e meio ansioso em sua direção, mas no fundo não importava, o que eu queria era sair daquele lugar escuro e sem recursos para mim e daquela desconfortável situação. Ao aproximar-me, ainda sem poder vê-lo bem, perguntei:

- Senhor, onde estou? Será que o senhor, piedoso e majestoso como é, pode me ajudar? Há horas que caminho e não acho a saída deste terrível lugar...

- Idiota! – interrompeu-me subitamente – Não percebes que já morreste? Aqui não tem saída nenhuma.

- Como assim? Quem é o senhor? Por que estou assim sem roupas? Como...?

- Chega de perguntas! Não tenho tempo a perder com você, criatura insignificante...

Assustei-me e depois me veio um turbilhão de indagações ocultas que cessaram quando a densa nebulosidade permitiu-me olhar mais de perto aquela figura estranha e aparentemente insana. Amigo, gelei completamente quando olhei aquele ser mais de perto. Ele vestia um manto escuro com um capuz que o cobria por inteiro, mas o mais interessante e não menos terrificante foi quando procurei olhar seu rosto e no lugar onde ele deveria estar, eu só conseguia ver um vulto negro e vazio, parecia um buraco sem luz e sem fim no lugar da cabeça. Aquilo não era humano, tenho certeza... Corri. Corri o mais depressa que pude.

Passei dias e dias naquele infinito cemitério sem ninguém. Comecei a orar a Deus por sua misericórdia. O que fiz para merecer isso? Encontrei, tempos depois, algumas pessoas que pareciam tão perdidas quanto eu, desorientadas. Sabia que durante minha “vida” tinha feito muito mal a algumas pessoas, mas não achei que chegaria até onde cheguei. Agora confuso e despido, escrevo-lhe, amigo, para pedir-lhe que reze por minha alma condenada. É somente o que lhe peço.

Solidariedade, meu caro, por essa alma perdida.

Alma errante.

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